quinta-feira, 30 de maio de 2013

O Escândalo do Mensalão V - Dirceu cai e Lula vai em busca do apoio do PMDB (dias 16 a 28.06.2005)

Apesar de José Dirceu ter sido lançado ao centro do escândalo, o governo consegue o “controle” sobre a CPI. Sobre isso o jornal se posicionou da seguinte maneira[1].
Depois do depoimento do deputado Roberto Jefferson no Conselho de Ética da Câmara ... veio a ser finalmente instalada a CPI dos Correios. E o foi à feição do governismo, que conseguiu conquistar a presidência e a relatoria da comissão. Sendo assim, aumentaram as chances de que se instaure no Legislativo um inquérito chapa-branca – ou seja, circunscrito às conveniências do governo ... [mas] Por mais que o governismo pretenda amesquinhar as apurações, parece muito difícil impedir que durante o inquérito o caso dos Correios se encontre com o do “mensalão”. Talvez por confiar em sua capacidade de controlar a situação no jogo miúdo da CPI, o governo reaja como se estivesse em outro planeta … Reações desse tipo, em tudo dissociadas do clima de perplexidade que toma o país, não ajudam o governo a recobrar sua credibilidade. 
Para o jornal, não basta mais que a CPI se confine a seu objetivo primário que era a investigação de corrupção nos Correios, afinal, novas denúncias surgiram com Jefferson e a secretária de Marcos Valério. O pior, entretanto, para o jornal, é que o governo parece não acompanhar o clima de “perplexidade” que toma conta. O jornal, portanto, se utiliza de um argumento de que o país está perplexo para exigir um comportamento de tipo diferente por parte do governo. Ou seja, busca reforço numa ideia de "totalidade", para pressionar o governo no sentido de apoiar a CPI.

Mas, em que pese declarações governistas de naturalidade e calma, na realidade, o impacto sobre o governo foi muito forte. Ainda no dia anterior o presidente se reunira com o ministério para avaliar a situação que ficou ainda mais grave. Enquanto isso, no Senado, buscando uma medida política de impacto na mídia, a bancada do PT pede o afastamento de Delúbio Soares. Seria uma tentativa de preservar o partido e o presidente Lula dos efeitos da crise. Por seu turno, o presidente deu a seguinte declaração[2]:
Nós já dissemos aqui, inúmeras vezes, que fomos eleitos para criar um novo ciclo de desenvolvimento para este país. Eu sei que isso deixa muita gente nervosa, porque tem gente que gostaria que as coisas não tivessem dado certo e que o Brasil estivesse hoje totalmente quebrado como esteve duas vezes antes de nós assumirmos… Eu tenho dito, todo santo dia ... eu quero que o meu governo seja aferido a partir do dia em que ele terminar. Aí, podem fazer comparação com todos os outros que vieram antes de nós.
No discurso, sempre quando agradecia a alguns companheiros mais importantes para a aprovação da MP, referia-se a Dirceu como um deles. Não há dúvida que, de alguma forma enaltecia o Ministro pelos serviços prestados tentando colar sua credibilidade em José Dirceu. Mas, sem dúvida, destaco aquilo que passaria a ser algo sempre presente nos discursos do presidente, principalmente nos contextos eleitorais: as comparações com o governo de Fernando Henrique.

Além disso, é sintomático o “pedido” que o presidente faz em só ser julgado ao final de seu mandato. Claro que estava se referindo à recente pesquisa do Datafolha sobre sua popularidade mantida em bons níveis, mas implicitamente o recado é outro: “não me coloquem no meio dessa crise”.

Dessa forma, então, no discurso presidencial o que vemos é o recurso à “diferenciação” (sua em relação ao governo FHC), seguida de uma tentativa de “universalização”, ou seja, de apelar a uma atuação (do próprio governo) que estaria se dando em prol de “todos”. Daí o editorial do jornal falar em “dissociação” do governo em relação à realidade, justamente pelo fato do discurso governamental não responder de forma direta ao acontecido e preferir “desviar” e falar de algo que lhe enaltece e diferencia.

É essa dissociação que marcará boa parte dos discursos presidenciais a partir daí, tendo sempre como base um “chamado” à comparação entre o governo Lula e o governo FHC. Com essa estratégia dominante, nestes momentos iniciais, o governo tenta se dissociar da realidade, ou melhor dizendo, da crise política instalada pelas denúncias de Roberto Jefferson.

No Congresso, o governo, por votação apertada, consegue a presidência e a relatoria da CPI. Mas, se no “jogo político” com os oposicionistas na CPI o governo vai obtendo “pequenas vitórias”, no confronto com as acusações vindas de Roberto Jefferson é flagrante a derrota do governo. No dia 17/06, dois dias depois de Jefferson intimar José Dirceu a deixar o cargo, o ministro cai. O título de capa é: “Mensalão derruba José Dirceu”, na mesma página uma evidência da preservação de Lula. Outra manchete anunciava: “Nova denúncia não piora avaliação de Lula”. Ainda não havia chegado o pior momento para o presidente. Vejamos como o jornal comentou a saída do ministro[3].
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva encerrou ontem o período de discursos, evasivas e tiradas futebolísticas para, finalmente, tomar decisões com vistas a enfrentar a crise política. Foi anunciado o pedido de demissão do ministro da Casa Civil, José Dirceu, que passará a atuar na Câmara dos Deputados … Com a demissão, o Planalto dá início a um necessário rearranjo de sua face política. 
Com a aceitação da renúncia de Dirceu pelo presidente o jornal avalia como positiva a medida no sentido dela efetivamente atender à realidade. E, como o presidente ainda mantém razoável credibilidade junto à opinião pública, o jornal espera que ele realmente parta para medidas concretas como uma reforma ministerial no sentido de recompor-se diante da crise.

Mas, o que significou a saída de Dirceu? Não se trata de uma simples saída de um ministro. É algo bem maior. José Dirceu foi sempre o principal estrategista da corrente interna do PT que levou Lula ao poder, seja defendendo uma inflexão ao centro seja criando pontes com diversos outros atores políticos. A raiva de Roberto Jefferson e a ironia quando intimou Dirceu a sair do ministério tinha um sentido muito claro. Dirceu foi o engenheiro responsável pela engrenagem responsável por conquistar e manter uma base aliada no Congresso Nacional. Era preciso chegar até ele.

E foi o que Jefferson fez. O ministro agora volta para a Câmara dos Deputados, e por lá a disposição para uma boa recepção praticamente não existem. E, por seu lado, o presidente realmente não fica parado. Ele já inicia conversas no sentido de promover mudanças no ministério. O primeiro passo, e mais natural, diz respeito à Casa Civil, e já no dia seguinte, 18/06, o título de capa do jornal afirma: “Lula convida Dilma para a Casa Civil”, e o jornal se posiciona assim[4]:
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva estaria inclinado a nomear alguém com características mais gerenciais do que de articulador político … É possível que a mudança ministerial venha também a extinguir a pasta da Coordenação Política, tarefa que seria transferida para o Congresso, a “planície”… Certo é que neste “novo” governo o PT perderá força e o PMDB ganhará mais espaço – em mais uma clássica operação na qual essa legenda, verdadeiro condomínio fisiológico de agrupamentos políticos, é convocada para assegurar a “governabilidade” de um Executivo em crise. Trata-se simplesmente de administrar a crise, esperando que a CPI dos Correios não venha a produzir novos escândalos – que poderiam ser fatais. Mais do que nunca, as perspectivas do governo para 2006 ficarão na dependência de bons resultados econômicos. 
Este editorial é muito significativo, pois antecipa alguns rumos que se revelariam decisivos muito em breve. Realmente a troca na Casa Civil significou uma inflexão na mobilidade política do governo junto ao Congresso Nacional. Algo como, um recuo tático da figura do Executivo sobre o Legislativo. Isso era necessário para manter-se razoavelmente afastado dos focos principais da crise.

Mas, no futuro, esta inflexão será compensada por uma espécie de “monopólio” da política nas mãos do próprio presidente. O recurso ao apoio do PMDB também é antecipado pelo jornal e sabemos como o apoio do partido foi gradativamente decisivo para Lula, a ponto de indicar o vice-presidente na chapa da atual presidente do país, Dilma Rousseff. Por outro lado, o editorial também fala da importância da política econômica, e veremos, mais tarde, como o debate sobre a política econômica do governo e o papel específico de Palocci terão um significado muito interessante para o “esfriamento” do escândalo do mensalão.

Então, qual o significado de Dilma na Casa Civil? De início, menos política e mais gerenciamento. Foi um “choque de gestão” nas palavras de Lula. O presidente também dá indícios de que a Coordenação Política poderá ser extinta. O momento é de grande inflexão “política” para o Executivo. A política do Executivo está sob ataque e será preciso repensar os modelos que, até então, vinham sendo testados. Neste momento, Jefferson está se licenciando da presidência do PTB e voltou a se referir a Dirceu como o comandante do “maior esquema de corrupção” dos últimos anos.

Em resposta, por exemplo, a ex-prefeita Martha Suplicy engrossa o coro dos que apontam para uma “conspiração” e disse haver uma tentativa de “linchamento” do partido, um clima de “macartismo”. Mas, o fato é que denúncias proliferam por todos os lados e o partido, na impossibilidade de oferecer respostas tão rapidamente às acusações parece reunir tudo sob o guarda-chuva da tese da “conspiração”. Gradativamente, estamos vendo a postura de “negação”, por parte do governo, e chamada de “dissociação” pelo jornal, começar a dar lugar a uma resposta concreta e cada vez mais preponderante: “golpismo”.

No PT, entretanto, a manutenção de Delúbio, que vinha sendo criticada, foi mantida, tentando-se evitar uma espécie de “efeito dominó” que desse força a um suposto conluio da direita (PSDB e PFL) contra o governo Lula. No dia 19/06 o título de capa vai nessa direção: “Dirceu evita expurgo na cúpula do PT”. Na realidade, essa postura da cúpula do PT é um desafio aos próprios críticos internos do partido. Delúbio e Sílvio Pereira foram bancados por José Dirceu na reunião do Diretório Nacional. Paralelamente, o jornal segue na sua postura investigativa, seguindo, principalmente, a linha que leva às operações de Marcos Valério.

Ainda neste dia o jornal trás a posição de vários intelectuais petistas sobre a crise. Há uma provocação inicial: “onde estão os intelectuais petistas?” questiona a reportagem[5]. De acordo com a matéria predomina um “silêncio” a respeito da crise. Na palavra de alguns dos entrevistados sobressaem as palavras “mal-estar instalado” (Olgária Matos), “incômodo” (Francisco de Oliveira), “dispersão” (Cesar Benjamin), “decepção” (Aziz Ab’Saber). De fato, a reportagem é uma mistura de constatação e provocação.

Nesse momento, o governo Lula já trabalha com a ideia de não só dar um perfil gerencial à Casa Civil, como também dar maior sustentabilidade à sua base de apoio atraindo o PMDB para perto. A ideia é uma mini-reforma ministerial para acomodar o partido.

Como já sabemos o PMDB, na realidade, nunca é tão coeso enquanto partido, então, já existe uma ala governista capitaneada por Renan Calheiros, presidente do Senado, e José Sarney, só esperando um aceno de Lula para ir em busca da ala oposicionista no PMDB. Seria uma aliança, na visão do governo, já com o objetivo de manter o partido forte para as eleições de 2006. O PMDB já possui as pastas das Comunicações (Eunício Oliveira) e da Previdência (Romero Jucá) e a intenção do governo é dobrar esse espaço.

No dia 21/06, em editorial, o jornal reage à tese de “conspiração” (golpismo) que começou a ser difundida pelo governo e pelo PT[6].
Na reunião de seu diretório nacional, no último sábado, o PT aprovou um documento em que tenta se defender das acusações de corrupção e manifesta solidariedade ao ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu … Mas, em seu empenho em atribuir a crise a uma “inescrupulosa campanha” que visa a desmoralizá-lo, o documento é mais um indício da desorientação com que os dirigentes petistas têm reagido à crise. O documento sustenta que as denúncias são fruto de uma “campanha patrocinada por setores da oposição e pela direita”. Adiante, anuncia que não aceitará acusações de setores ansiosos por “desmoralizar a esquerda, seus valores e seu projeto histórico”… Em que pese o delírio da suposição, o fato de o PT corroborá-la exige que se reforce o óbvio. Ou seja, em primeiro lugar, que as invectivas partiram de um aliado do governo, e não da oposição. Se Jefferson é representante de uma direita retrógrada, ninguém sabia disso melhor que o PT. Em segundo, não faz sentido pensar numa conspiração da “classe dominante” por um motivo simples: nenhum de seus interesses foi contrariado. Ao contrário, o PT repete a política econômica da gestão anterior e tem recebido renovados elogios do sistema financeiro. Por fim, lideranças do PSDB têm procurado, como o PT não desconhece, evitar que a crise se traduza em desestabilização do governo.
O jornal está num claro acompanhamento das ações do governo e diz que a tese de uma suposta “conspiração” é um dado da irrealidade com que vários setores governistas tratam a questão, e levanta argumentos.

O fato é que, seguindo a estratégia governamental e do PT algumas entidades e movimentos sociais, como o MST, a UNE e a CUT, lançam a chamada “Carta ao Povo Brasileiro” denunciando o “golpismo” de setores da direita contra o governo Lula, dado o caráter “vazio” das denúncias. A CNBB é consultada mas não assina a carta, e vários intelectuais ouvidos pelo jornal, por outro lado, rejeitam o “clima de golpismo” como se fosse uma ideia exclusiva do PT.

Uma tese parece ser comum a todos esses intelectuais (Luiz Werneck Vianna, Fernando Limongi, Maria Dalva Gil Kinzo, Leôncio Martins Rodrigues): o PT está ameaçado pelas denúncias e se blinda criando a tese de conspiração, afinal de contas, críticas e denúncias fazem parte do jogo político, como bem o mostrou o caso de Collor, cujo impeachment foi menos o resultado de investigações que de pressões populares e críticas da imprensa.

Este é o jogo político, portanto, jogado na arena dos conflitos pela conquista do espaço político e pelo capital simbólico. É nesta dupla arena que se dá o embate. O “golpismo”, portanto, é uma estratégia discursiva que serve bem como uma das principais munições nesse estágio de uma guerra que é, a cima de tudo, simbólica.

De fato, até este momento, o que se percebe no comportamento da oposição, principalmente quando o clima “esquenta” demasiadamente é por “panos quentes” em certas apurações e críticas. Talvez mesmo pressentindo o quanto levantar o tapete do jogo político pode significar um desastre bem maior do que as aparências indicam.

Afinal, durante as investigações vários foram os indícios e depoimentos no sentido de que a prática da “compra” de parlamentares e de partidos é bem antiga, e de forma alguma restrita ao plano federal. Neste caso, já saímos do terreno do jogo pelo poder político (criou-se uma espécie de “limite” para o embate) e entramos no terreno da luta pelo capital simbólico, onde a publicização e as palavras adquirem uma importância demasiadamente maior que qualquer fato ou investigação. Daí a importância dos discursos midiático e político, principalmente o presidencial.

Mais à frente, veremos como foi decisivo para Lula, ir, cada vez mais, para a linha de frente do embate, na tentativa de contrapor ao discurso midiático investigativo e da oposição o seu discurso governista. Assim, é neste terreno da luta simbólica que o presidente Lula e o PT disputam arduamente quando levantam a tese da “conspiração”. A questão central passa a ser a sobrevivência do partido e do governo.

No dia 22/06 o jornal estampa em seu título de capa: “Ninguém é mais ético que eu, diz Lula”. Certamente uma resposta ainda mais forte do presidente à crise política que já chegou à sua ante-sala. Vejamos alguns pontos deste discurso presidencial decisivo para trazer Lula para ainda mais perto do centro do campo de batalha[7].
Eu quero dizer para vocês que, de vez em quando, você é pego de surpresa com notícias que nenhum brasileiro gostaria de ser pego, sobretudo quando se trata de corrupção. De vez em quando eu fico me perguntando se é isso mesmo que as pessoas querem, porque se as pessoas querem combate à corrupção, as pessoas deveriam estar, todas, sobretudo as que estão acusando, aplaudindo o governo. Porque na história republicana ... nenhum governo fez, contra a corrupção, 20% do que estamos fazendo. Nenhum governo fez… Verdade. E a imprensa cumpre um papel extremamente importante em denunciar as possíveis mazelas que existem em qualquer lugar do país ... O que não pode é o governo ficar correndo atrás de denúncia vazia. Se tem denúncia contra a atuação do Congresso, é um problema do Congresso Nacional … Que criem quantas CPIs quiserem criar. Agora, o que não pode é, por conta de insinuações ou ilações, você deixar de cumprir com o papel do próprio Congresso Nacional, que é votar as coisas que o Brasil tem interesse … Eu digo uma coisa para vocês, meus companheiros, eu digo todo dia isso, já disse na televisão, que é o seguinte: eu sou filho de uma mãe analfabeta e pai analfabeto. Minha mãe morreu sem saber escrever um “o” com um copo. E determinadas coisas a gente não aprende na universidade, a gente não aprende na política, a gente não aprende na rua, a gente aprende dentro de casa. Vergonha na cara a gente aprende é dentro de casa… e, se é para fazer, ninguém neste país tem mais autoridade moral e ética do que eu para fazer o que precisa ser feito neste país.
É uma fala “dura”, onde o presidente mais uma vez marca posição em colocar-se como o governo de maior combate à corrupção, enaltece o papel investigativo da imprensa, mas diz que não pode ficar parado esperando que uma CPI comprometa o pleno funcionamento do Congresso Nacional. Se, portanto, o governo ver com maus olhos a CPI é porque ela “atrapalha” a votação daquilo que é “importante” para o país.

Além disso, o presidente traz à tona aquele que seria o seu maior patrimônio: a autoridade moral e ética. Este é um momento decisivo, pois é mais um passo em direção ao seu descolamento em relação à crise, pois, se há crise e há corrupção, o que o presidente tem a ver com isso? Esse é o raciocínio, simples e que tem grande possibilidade de introjeção nas camadas mais populares.

Aqui, neste discurso os recursos à “narrativização” são extensos. “Estórias” são contadas, personagens do cotidiano surgem, enfim, apelos bastante populares são utilizados para reforçar um sentimento de “pertença”, uma ligação estreita entre o presidente e o homem comum. É nesse enredo que o presidente conta a história da corrupção no Brasil, e delimita aquilo que seria a sua maior defesa contra as acusações: a história de pobreza, preocupação com o trabalho, e honestidade de um homem comum.

Enquanto isso, as sessões da CPI começam com os depoimentos. Gradativamente, tais sessões vão se transformando em um espetáculo à parte dada sua visibilização. Mas, gradativamente, também, a população irá perdendo o interesse pela disputa neste terreno, o da disputa pelo poder político, o da investigação, o dos depoimentos e busca de provas. Gradativamente, a população irá se concentrando, cada vez mais, no terreno da luta simbólica. Afinal, é um terreno de alcance maior, mais facilmente assimilável e, onde, de fato, a política se constitui quando quer o apoio da população para alguma finalidade. A palavra e o discurso ainda são decisivos para o jogo político.

Neste novo contexto simbólico onde o presidente está “chamando a briga” para si surgem situações muito interessantes. De um lado, o presidente inicia uma “agenda positiva” junto a artistas, movimentos sociais e outras personalidades, sempre em busca de aumentar seu capital simbólico (respeitabilidade, credibilidade).

Ao lado disto, o presidente vai dando sinais de que precisa chamar o PT para uma “conversa”. E, paralelamente, temos discursos, como o do ex-presidente Fernando Henrique dizendo que o presidente deve manter as investigações justamente para “saber com quem andava” (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2306200528.htm).

Parece ficar claro que não há um interesse real em que a crise chegue a um ponto de efetivamente ameaçar o poder de Lula. Setores da oposição já vinham dando sinais nesse sentido, como no caso em que o STF já havia fornecido condições para a reabertura da CPI dos Bingos, mas a oposição no Senado acordou com o governo para enterrar tal possibilidade.

Mas o que se quer, então? O que fica mais claro é um desejo de enfraquecimento do capital simbólico de Lula, ferindo-o através de sua estreita vinculação com o PT, já bem machucado até então. Fazer o presidente “curvar-se” seria uma estratégia bem mais interessante para a oposição que não tem cacife para bancar uma movimentação popular para uma possível retirada do presidente, e nem se interessa em ficar com o ônus de ter ameaçado “tirar” o presidente do poder.

Não podemos esquecer que algumas pesquisas de opinião foram feitas e a popularidade de Lula não despencou como muitos esperavam. Pelo contrário, está ganhando fôlego, está aprendendo a ir ao campo de batalha “sozinho”. Em mais um discurso, o presidente reforça sua perplexidade com a situação, e o tema não poderia ser mais direto: corrupção[8].
o corrupto deve ser sempre punido, e sempre de forma exemplar. Seja ele quem for, venha de onde vier, seja adversário ou aliado. Como todos sabemos, a corrupção é uma doença antiga. Mas … se tem um governo que tem sido implacável no combate à corrupção, desde o primeiro dia, é o meu governo… Isso pode até dar a falsa impressão de que a corrupção tem aumentado, quando, na verdade, o que aumentou, e muito, foi o combate à corrupção e, em decorrência disso, aumentou naturalmente a quantidade de prisões e ações da polícia federal, que aparecem quase todos os dias na televisão e nos jornais … O Brasil tem maturidade para corrigir seus próprios erros. Além disso, feliz do país que tem uma imprensa livre e democrática que a tudo pode acompanhar, fiscalizar e investigar. Sou daqueles que acreditam que a verdade sempre prevalece, mais cedo ou mais tarde… Tenho apenas dois anos e meio de governo, dois anos e meio, e durante esse pouco espaço de tempo, muita coisa já mudou neste país. A economia está em ordem, as exportações continuam crescendo, o risco Brasil continua caindo, o comércio e a indústria continuam empregando, e uma grande quantidade de projetos sociais se estende por todo o território nacional… O meu objetivo é claro: fortalecer o país, proteger os brasileiros mais pobres e fazer crescer a economia.
O pronunciamento é uma síntese de discursos e falas que vinham sendo divulgadas nos últimos dias, e o eixo do discurso não se altera: um homem do povo chega ao poder e tem grandes tarefas, como o combate à corrupção e a proteção aos mais pobres. A novidade neste discurso é o surgimento da ideia de “proteção” aos pobres que, mais tarde, com a expansão dos programas sociais e a ascensão do tema ao lugar máximo no discurso presidencial vai proporcionar bons debates acerca de um possível caráter populista do presidente.

Mais uma vez, também, o presidente faz a defesa da liberdade de imprensa. Chegou a dizer: “feliz do país que tem uma imprensa livre e democrática que tudo pode acompanhar, fiscalizar e investigar”. Mas, a direção maior do discurso é clara: descolar a imagem do presidente de qualquer problema político. Já não se trata sequer de negar a existência de crise política, mas sim de dizer que esta crise não é do presidente. É do Congresso, dos corruptos.

Mas, esse clima de fortalecimento simbólico não contamina o ex-ministro José Dirceu, que passou a “inflamar” a animosidade de militantes e movimentos sociais, falando em uma “inescrupulosa campanha” para derrubar o presidente Lula e, indo na contra-mão do discurso presidencial, associa a mídia como aliada das elites no “golpe branco” contra o governo de esquerda.

Ainda é um momento em que cabe ao PT “bater” e levantar a tese do “golpismo”, enquanto ao presidente cabe descolar-se e, com isso, confinar a crise no menor espaço político possível. Quanto à essas instigações, o editorial do jornal, no dia seguinte, 24/06, vai se posicionar da seguinte maneira[9]:
Na noite de terça-feira, uma equipe de reportagem da TV Globo foi agredida por três homens em frente à sede do PT, no centro de São Paulo. Segundo a polícia, um deles teria sido responsabilizado criminalmente pela depredação da fachada do Congresso Nacional, em agosto de 2003, durante os debates da reforma da Previdência ... o episódio inspira uma reflexão acerca do ambiente de animosidade que se vai fomentando com algumas reações equivocadas de militantes e dirigentes do PT às denúncias de corrupção. Coube ao deputado José Dirceu, ao ver-se obrigado a sair da Casa Civil, reavivar um vocabulário de combate e soar os tambores da mobilização dos movimentos sociais contra o que parte do petismo quer caracterizar como uma “inescrupulosa campanha” para derrubar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ao conclamar a militância às ruas, Dirceu, escoltado pela direção do partido, endossou a tese estapafúrdia de que a “mídia”, aliada a representantes das elites, estaria envolvida num “golpe branco” contra um governo “de esquerda”. A mensagem, conveniente e de fácil assimilação no tosco universo do baixo clero petista, é um inadequado e perigoso estímulo ao confronto. Mais grave ainda, a disseminação da idéia de que a imprensa patrocina tal espécie de trama é uma inaceitável tentativa de desqualificar o trabalho jornalístico e criar um clima intimidativo ao exercício da liberdade de expressão.
Como se vê, o jornal reage muito duramente não só às agressões físicas mas, principalmente, às agressões morais que sofre a “mídia”, associada às “elites” num suposto “golpe branco” contra a esquerda. Mesmo sem discutir o assunto, o editorial traz um tema relevante neste momento e que permeia grande parte dos discursos do PT: a ideia de que o golpe é contra a chegada ao poder de um partido de esquerda.

É um tema, certamente, que não resiste às análises, pois como já vimos no início o Lula e o PT que chegam ao poder não são o mesmo de seu início. Eles já têm a benção do chamado grande eleitor médio brasileiro. Não haveria razão de ser para este discurso. Mas, ao mesmo tempo, para a militância e os movimentos sociais e sindicais, ele tem uma força aglutinadora, pela identificação histórica. A prova disto é que nenhum grande movimento popular veio à tona neste momento, configurando mesmo a batalha política dentro dos limites da luta simbólica.

Neste mesmo dia, uma notícia que já a alguns dias se aguardava. No título de capa do jornal “Lula negocia reforma com o PMDB”. A conjuntura se revela muito interessante. Lula não está enfraquecido. Cancela viagens e chama o PMDB para conversas. Planeja fazer uma ampla reforma ministerial. Não quer saber de ministros que serão candidatos em 2006. Não quer a politização da política econômica.

No dia seguinte, o título de capa dá continuidade ao tema: “Lula oferece 4 ministérios ao PMDB”. Ora, como nem só de capital simbólico vive um presidente, a intenção de uma reforma política no ministério começou a dar frutos essencialmente políticos. Foram 4 ministérios de peso oferecidos ao PMDB: Minas e Energia (pedido pessoal de Sarney), Integração Nacional, Saúde e Cidades. O PMDB pediu alguns dias para pensar.

O fundamental nesta estratégia é aumentar a proteção do governo no Congresso Nacional onde o jogo político, no sentido estrito, se dá. Foi significativo o depoimento de José Genoíno, tentando minimizar críticas pela aliança, ao dizer que a aproximação com o PMDB não fere as ligações do PT com os movimentos sociais e faz parte do jogo democrático. Para alguns críticos seria o início da “sarneyzação” do governo Lula para muitos militantes da esquerda, seria uma “despetização” do governo. O que dá mais ou menos no mesmo. Sobre este tema, o jornal, no dia 27/06, trás o seguinte em seu editorial[10]:
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu-se com o presidente do PMDB, Michel Temer, e com o senador Renan Calheiros para definir a participação da legenda no governo. Em entrevista coletiva, Temer declarou que o presidente fez um “apelo” para que o PMDB continuasse colaborando com a “governabilidade” ... O presidente do partido condicionou a participação na reforma a uma manifestação de Lula sobre a necessidade da aliança (o “apelo” a que se referiu Temer), pediu os quatro ministérios já prometidos, voz ativa nas decisões do governo e mais consideração aos pleitos de seus governadores. Além disso, a sigla não quer que o Planalto interfira em seus assuntos internos, especialmente na definição da candidatura para 2006. Ontem, no entanto, governadores e caciques como Orestes Quércia colocaram obstáculos à proposta de “coalizão” do Planalto. Com isso, o governo pode ser forçado a ampliar as suas concessões, tornando-se ainda mais refém de forças conservadoras. Essa parece ser a única perspectiva para melhorar suas condições políticas num momento em que precisa reduzir as áreas de atrito a fim de se defender das denúncias de corrupção. Cada vez mais, o governo petista se parece com outro qualquer.
Em outro editorial, no dia 29/06, o jornal comenta outros aspectos da relação do governo com o PMDB[11].
O naufrágio do que seria uma “coalizão” com o PMDB para governar o país, poucos dias depois de o presidente da República ter prometido ministérios e posado ao lado de caciques do partido, evidencia mais uma vez o desastre da articulação política do governo e sua inépcia quando se trata de tomar decisões importantes em tempo adequado. Desorientado e lento, o Planalto deixa-se atropelar pelos acontecimentos, (...) Não tardou para que governadores e líderes do PMDB recusassem a oferta, enterrando a “coalizão”. Antes de expor-se ao fiasco, o presidente Lula precisaria ao menos ter obtido mais garantias sobre as perspectivas da negociação com o PMDB (…) Ás vezes tem-se a impressão de que Lula acredita que sua figura e suas palavras possuem poderes encantatórios, capazes de transformar a realidade sem a necessidade de que nela se exerça a ação humana do trabalho.
O jornal levanta a tese da “fragilidade política” do governo, sua incapacidade e falta de inteligência em recompor sua base. Mas, traz algo que se revelaria profético: a denúncia de que o presidente Lula acredita que sua figura e suas palavras encantariam a ponto de transformar a realidade. Mas, é justamente isso que vai se revelar após o pior da crise do mensalão passar.

Gradativamente, os temas internos oriundos das investigações e depoimentos na CPI vão ganhando espaço na mídia. É o momento em que outros personagens, mais próximos ao núcleo “político” da crise vão se sobressair, como veremos a seguir. Os principais "lances" desse momento podem ser resumidos assim:

CONTRA-ALEGAÇÃO (governo)

Acuado, o governo não assiste passivo à queda de Dirceu. O presidente fala, de imediato, em uma reforma ministerial. O alvo principal é o PMDB, e o objetivo maior, fortalecer sua posição no Congresso Nacional. Simbolicamente, o que busca é mostrar capacidade de dar continuidade ao governo. O primeiro exemplo vem com a escolha de Dilma para a Casa Civil. Lula fala em “gestão técnica”, como se quisesse “tirar a política da 1ª cena”. Há uma inflexão da política, numa tentativa de se “escapar” à ela neste momento.

Incremento da contra-alegação - Em seu discurso, no PT, Dirceu atribuiu os ataques às “forças políticas sociais e conservadoras da direita”, sem dúvida uma conclamação à união do partido diante dos adversários. O partido resiste a “entregar” Delúbio e Sílvio Pereira. O governo e o PT lançam a tese da “conspiração” da direita, um “golpismo branco”.

NOVAS ALEGAÇÕES

O jornal avança nas investigações sobre as operações de Marcos Valério e trás uma forte matéria que aponta para um ”abandono” do PT por parte de sua “intelectualidade”. O PT, mais do que qualquer nome em específico, parece agora estar no centro das atenções.

Incremento da contra-alegação - Lula praticamente “chama a briga para si” e entra em cena a questão “ética” – o maior patrimônio acumulado historicamente pelo PT e pelo presidente. Fala de “bobagens” e desqualifica as acusações. E traz o clima de reeleição para o jogo, dizendo que a oposição está com medo de perder novamente. A oposição, por seu lado, também não avança em sua “sede” de atingir o presidente. Lula oferece mais 4 ministérios ao PMDB na busca de apoio político para sair da crise.

Continua....

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[1] ”CPI Chapa Branca”, 16/06/05, dicponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200501.htm
[2] Discurso do Presidente da República na cerimônia de assinatura da MP de Desoneração Tributária e de Estímulo ao Desenvolvimento e ao Investimento, Palácio do Planalto, 15/06/05, disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/
[3] ”A Queda de Dirceu”, 17/06/05. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1706200501.htm
[4] ”O “Novo” Governo”, 18/06/05, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1806200501.htm
[5] ”O Silêncio dos Inocentes”, 19/06/05, disponível: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1906200518.htm
[6] ”Fantasia Conspiratória”, 21/06/05, disponível: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2106200501.htm
[7] Discurso do Presidente da República na abertura do Congresso da União Nacional de Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária, Luziânia-GO, 21/06/05, disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/
[8] Pronunciamento à nação do Presidente da República em cadeia de rádio e TV sobre medidas do governo para o combate à corrupção, 23/06/05, disponível em: http://www.info.planalto.gov.br/
[9] ”Agressões Perigosas”, 24/06/05, disponível: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2406200501.htm
[10] ”Nos Braços do PMDB”, 27/06/05, disponível: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2706200501.htm
[11] ”Desastre Político”, 29/06/05, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2906200501.htm